sábado, janeiro 15, 2005

A nossa legislação "avançada e pioneira"

No rescaldo do maremoto no Índico— e numa relativamente peripatética histeria do tipo "a seguir somos nós!"—, a RTP organizou um dos seus "Prós e Contras" a propósito do nível de preparação português (do Estado, das instituições, da sociedade e dos cidadãos) para catástrofes naturais daquele tipo.
Pode-se discutir com maior ou menor profundidade as razões que levam às formas de "debater" que pontuam o nosso panorama mediático e isso, em si mesmo, seria uma questão interessante, mas prefiro não me perder nas generalidades estruturais e aproveitar para esta reflexão uma afirmação do Presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC)— afirmação essa muito repetida em vários contextos e para servir vários (des)propósitos—, que defende que o problema português (estava-se a falar da "performance" das infraestuturas e do parque construído em caso de sismo e/ou maremoto) não era um problema da legislação e regulamentação— área em que "somos pioneiros", de tal forma que um dos código europeus está a ser feito tendo por base a nossa experiência—, mas sim um problema ao nível das ferramentas e procedimentos de verificação do cumprimento dessa legislação.
A maior parte dos portugueses nesta altura suspira e pergunta: "e novidades?"
E com razão.

Naquele serão televisivo discutia-se, entre outras coisas, a capacidade da nossa "construção" (estradas, pontes, casas, edifícios públicos, redes de águas e electricidade, etc.) resistir a uma "agressão sísmica" e, quanto a isso, ficámos (mais uma vez) descansados: se depender dos regulamentos e da legislação, não há casa que caia, não há ponte que se desmorone, não há desgraça que nos caia em cima. (A não ser que estejamos a falar da construção do finzinho do século XIX e da primeira metade do século XX, altura em que já nos tínhamos esquecido da destruição de 1755 e ainda não tinham entrado em campo os heróicos regulamentadores do LNEC, honra lhes seja feita).
Mas ninguém que estivesse a assistir àquele serão televisivo tinha ainda obliterado da memória a queda da Ponte de Entre-os-Rios e as subsequentes confirmações de debilidades estruturais em pontes, túneis, viadutos e estradas e estão ainda presentes na nossa memória colectiva as derrocadas em Campanhã, na altura das escavações do Metro ou a desolação da encosta dos Guindais (só me ocorrem desgraças portuenses, desculpem lá o regionalismo), além de vivermos quotidianamente e ao nível doméstico rodeados de exemplos da fraquíssima qualidade da contrução lusa.
Por isso, ninguém consegue conter um sorriso azedo quando ouve falar da nossa legislação "pioneira e avançada", seja na construção, seja na protecção ambiental, seja onde for. Porque ninguém vê forma de segurar casas e pontes com uns quantos fascículos de decretos-lei e regulamentação associada, por muito que a azáfama escriturária produza catrapázios de normas e códigos.
Porque mesmo essas construções de papel se desmoronam quando com elas se tenta erigir um monumento ào nosso pioneirismo (estou a pensar na luta dos Arquitectos pelo direito à profissão, mas é só um exemplo).

Este nosso orgulho provinciano e bacoco na "legislação pioneira e avançada", acompanhado do proverbial encolher de ombros quando toca à real implementação, faz-me pensar sobre a natureza da Lei. E, em jeito de exercício, proporia que existem duas formas essenciais de criar leis (falo de leis, mas estou a pensar em todos os documentos que visam regulamentar a um nível público as várias práticas com impacto social).
Essas duas formas em que penso dizem respeito à natureza da relação entre as práticas vigentes e as práticas propostas pela Lei. De forma simplificada, podemos dizer que, desde os primórdios da História da Humanidade e da História do Direito (a regulação das relações sociais e económicas), as classes dirigentes (religiosas, sociais, económicas e políticas) tomaram a decisão de transformar em Lei mecanismos de dois tipos: regulamentares e correctivos.
No primeiro caso, a Lei resulta da sistematização das boas práticas, impondo a sua normalização. No segundo, a Lei resulta da necessidade de combater as más práticas. Podendo, na forma e na substância ser extremamente próximas, estas duas formas de legislar, naturalmente, têm impactos de tipo diferente e exigências claramente diferentes.
Correndo seriamente o risco de estar a apresentar uma simplificação quase ridícula destes processos (eu preferiria caricatural, mas nem sempre se consegue), diria ainda que uma forma eficaz de avaliar o avanço civilizacional de um Estado (não necessariamente dum povo) é avaliar o peso relativo dos procedimentos regulamentares e correctivos. Por uma razão simples: quanto maior for o carácter regulamentar dos diplomas e decretos, mais próxima é a Lei da realidade e, em grande parte podemos dizer também que a Lei emana das práticas dos cidadãos; o Estado é um estado de cidadãos. Quanto mais procedimentos de tipo correctivo estiverem presentes na vontade do Estado, maior é o fosso entre dirigentes e dirigidos e mais longe estamos do tal conceito do Estado de cidadãos.

Postas assim as coisas, nesta espécie de radicalismo democrata, laxista e demagógico, torna-se difícil fazer a manobra, que me é vital, de dizer que não quero com isto defender um Estado que nivele por baixo as (que devem ser) altas aspirações duma sociedade e duma nação.
Quero apenas reafirmar a minha convicção na dependência absoluta que as sociedades têm da sua capacidade de formar cidadãos.
Assumindo que os tais procedimentos correctivos impostos pelo Estado, sendo muitas vezes necessários, são mecanismos de abstratização da "coisa pública" e levam a uma divergência permanente e inevitável entre dirigentes e dirigidos, acredito, para mal dos meus pecados, que a solução— única e radical— passa por depositar os nossos esforços e a nossa esperança em mecanismos que, formando e qualificando cidadãos, permitam o abandono da lógica correctiva em detrimento duma lógica regulamentar, que seria (quem sabe?) capaz de nos transformar, duma sociedade com "legislação pioneira e avançada" de ombros encolhidos, numa sociedade com uma legislação equilibrada, globalmente empenhada na sua implementação.

Estou convicto que é este um dos "segredos" do progresso civilizacional de nações que invejamos e que esta é uma das batalhas fundamentais da/pela cidadania.

1 comentário:

JM disse...

Entretanto ficámos a saber que o Plano Regional de Emergência dos Açores— que no tal Prós e Contras foi tema de discussão e montra obscena da inabilidade e incompetência dos responsáveis nacionais— continua por aprovar.
Haja vergonha!