segunda-feira, janeiro 19, 2009

Foge, Élie!

Saímos sem fechar a porta à chave.
A mamã chorava.
Era uma manhã de Junho, mesmo antes do fim das aulas.
Eu estava a jogar às damas com bocadinhos de pão, nos quadrados do oleado da cozinha.
O Sr. Perrier, o nosso vizinho que era polícia, veio bater à porta.
Sussurrou qualquer coisa ao meu pai.
Escutei: «Ralph… Yves».
Não conhecia ninguém com esses nomes.
O meu nome é Élie.
A mamã fez-me meter algumas roupas à pressa na pasta. Meti também o livro de Robinson Crusoé que tinham acabado de dar-me quando fiz sete anos.
― Vamos esconder-te no campo e depois vimos buscar-te.
― Depois de quê?
Tive de enfiar o sobretudo por cima da camisa cinzenta. Era quase Verão, estava quente. Percebi que era para que não vissem a estrela amarela que a mamã tinha pregado no dia 9 de Junho, o dia do meu aniversário.
Depois fomos a pé até à estação. Não apanhámos o autocarro. Logo que o comboio saiu de Paris, colei o nariz aos vidros para contar as vacas nos campos.
O papá apertava os dentes. A mamã fungava.
À chegada perguntámos onde era a quinta do Sr. François. No final de um caminho, vimo-lo apoiado num portão ferrugento. Tirou uma beata amarelada da boca.
Não cheirava nada bem.
Eu não queria ficar ali. O papá pôs a mão no meu ombro. A mamã acariciou-me os cabelos:
― Vai ser como nas férias ― disse-me ao ouvido.
Engoli as lágrimas.
Vi uma mulher que empurrava um carrinho de mão ao longo do pântano, e coelhos e patos, como no livro de leitura da escola.
Disfarçadamente, o papá entregou um envelope ao Sr. François.
Antes de partir, a mamã ajoelhou-se diante de mim.
Enquanto falava comigo, estava sempre a levantar a gola do meu sobretudo como se eu tivesse frio.
― Ouve bem, Élie. A partir de agora chamas-te Émile. Émile, estás a ouvir? E o Sr. e a Sra. François vão ser os teus tio e tia. É preciso que te portes bem. Nós voltamos.
Vi-os partir na curva do caminho. Com a pasta às costas, eu já desistira de me mexer.
A Sra. François fez-me entrar em casa. À minha frente, na longa mesa, pousou uma tigela de leite quente. Tinha nata, mas eu não disse nada. A mamã já não estava ali para ma tirar.
Uma mosca esticava as patas na toalha pegajosa. Vi que aqui não ia poder jogar às damas por causa dos horrorosos desenhos de raminhos de flores.
Mais tarde, subi ao sótão para me deitar. Ninguém me deu um beijo de boa-noite. Tinha medo. Chorei durante muito tempo. Por fim, abracei-me ao livro do Robinson e adormeci.
Os cobertores picavam.
Tive um pesadelo. Estava numa ilha deserta. O Sexta-Feira vinha atrás de mim para me matar e eu corria em volta de um pântano lodoso.
De manhã fui acordado por gritos:
― Émile! Émile!
Lembrei-me que era eu. Tinha aulas.
O professor fez logo troça de mim diante dos outros por causa da minha pronúncia parisiense. Depois, fizemos um ditado.
Dei tantos erros que tive de enfiar as orelhas de burro até aos olhos, e a minha folha de ditado foi arrancada e pregada com um alfinete na minha camisa. Quase no mesmo sítio da estrela que a Sra. François tinha descosido a resmungar:
― Este ainda nos vai levar a todos para a prisão!
Nos dias seguintes, fiquei de castigo, sem recreio. Tive de copiar cem vezes:
― Não se escreve “Tens deportar-te bem”; escreve-se “Tens de portar-te bem.”
Em Paris, eu era o primeiro da turma e a minha caneta nunca esborratava.
Depois, chegaram as férias grandes. O papá e a mamã não vieram buscar-me. Durante todo o Verão, dei de beber aos animais e aprendi a levar as vacas até ao prado. A Capucine era a minha preferida. Contava-lhe tudo. Ela tinha um focinho branco e cor-de-rosa, quente e doce. Doce como o Totor, o meu urso, que deixei ficar em Paris.
Tinha lido o Robinson todo e já não tinha medo do Sexta-Feira. Mas, quando regressei às aulas, ainda tinha medo do professor.
Mas tinha sobretudo medo de uma coisa: que fizessem mal ao papá e à mamã, que eles nunca mais pudessem vir buscar-me, que se esquecessem do lugar onde me tinham escondido, que não me reconhecessem porque eu tinha crescido muito.
Até tentei deixar de comer para parar de crescer, mas não consegui. Tinha muita fome. Os François diziam-me sempre que eu comia por quatro, que não tinha sido um bom negócio e que veriam o que fazer porque o envelope em breve ficaria vazio. Riam-se.
Um dia, disseram que a França estava cortada em duas. Noutro dia, também falaram de Ralph e de Yves. Eu rodava a manivela do moinho de café a fingir que era o comboio.
E, depois, deixou de haver café.
Voltou o Inverno. Tinha-me habituado a lavar-me na bomba. A água gelada esguichava na banca de pedra. Havia água quente na torneira do fogão a lenha, mas era reservada para o grande banho de domingo, antes da missa.
Para fazer chichi e o resto, era preciso ir lá fora, para cima do esterco, atrás do celeiro.
― E que ninguém te veja! ― avisara-me o Sr. François.― Despachado como tu és, ainda nos levas a todos presos…
Mas ele não se preocupava nada.
Ao ver o meu espanto, a Sra. François acrescentou:
― É como com a estrela, quando chegaste cá a casa; tem a ver com a guerra…
Não percebia nada. Ainda não tinha feito oito anos.
Foi nessa altura que me apercebi que a velha vizinha dos François me andava a espiar. Aproveitava para o fazer enquanto lavava os bidões de leite antes da ordenha.
Um dia, fez-me sinal com o dedo adunco para que me aproximasse da cancela.
― Então, menino, esqueceram-se de ti na arrecadação? Os teus pais perderam a tua morada? Nem toda a gente a perdeu… Vais ver o que te espera!
Fugi a correr, cheio de medo. Tinha percebido que ela queria cortar-me qualquer coisa, mas não sabia o quê…
À noite, chamei pela mamã e pelo papá no meu colchão de palha. Só o Tommy, um cão da aldeia, me fez uma visita.
Um dia, vi a Mariette, a neta dela, que parecia má como uma bruxa. Tinha um canivete na mão. Pensei que tinha sido mandada pela avó para me matar, mas ela só queria brincar comigo. Achei-a bonita, com o seu laço vermelho nos cabelos.
Talvez estivesse escondida como eu e não pudesse dizê-lo. Talvez pertencesse à família deles e fosse simpática.
Decidimos brincar os dois.
No entanto, na aldeia, nunca nos tínhamos falado.
Construímos uma cabana. As paredes estavam atapetadas com jornais. A mesa era feita com toros de madeira, a cama com ramos.
Brincámos aos casamentos. Eu era o seu rei, ela a minha rainha.
Fizemos coroas. Mariette era um pouco maior do que eu, mas assegurava-me que não fazia mal, que nos casaríamos para sempre quando tivéssemos idade e a guerra acabasse.
Eu disse que sim. Tinha acabado de fazer oito anos.
Depois veio um Verão e um outro Inverno. A Mariette e eu brincávamos sempre juntos.
Em Abril, ela disse-me que tinha um segredo. Mas que não tinha o direito de mo contar por causa da avó.
― Eu também tenho um grande segredo.
Tinha muita vontade de lhe contar tudo: o falso Émile, a estrela amarela cosida e descosida, os François e o envelope, e os meus pais que me tinham abandonado havia já dois anos.
Nessa quarta-feira tínhamos decidido brincar aos casamentos-quase-de-verdade na igreja, depois da escola. Tinha posto à Mariette uma coroa de papoilas. Entrámos dando as mãos. Numa mancha de luz vimos a avó a rezar. Levantou a cabeça e pregou os dois olhos no meio da minha fronte.
Depressa, a Mariette puxou-me para fora. Ria como uma louca e tinha vontade de fazer chichi. ― Também eu ― disse-lhe. Fomos para trás da igreja. Ríamos, eu de pé, ela agachada.
De repente, olhou-me com um ar estranho. Levantou-se, puxou as cuecas e, a tartamudear qualquer coisa, partiu como uma flecha deixando-me sozinho. Apertei a carcela e fui para casa.
Depois do jantar e da louça, voltei a sair, enquanto os François ouviam as notícias na rádio.
Perto da cavalariça, por detrás do trigo, vi a mãe da Mariette a estender a roupa. Pedi para a ver e a mãe pôs-se a gritar:
― Não há mais Mariette! Acabou-se a Mariette! Chispa daqui! E não te chegues a ela, senão…
Fez um gesto com as mãos como se estivesse a degolar um frango.
― Ala! Como os teus pais! Como os da tua laia!
As molas caíram na relva. Corri para bem longe.
A noite caiu. Corri até mais não poder. Não queria voltar à quinta. Queria encontrar o papá e a mamã. Naquele instante.
Perto da estação, passei ao lado da casa grande, aquela onde diziam que havia todo o ano uma espécie de colónia de férias para crianças. O Tommy, o cão deles, apareceu. Tinha- me encolhido nos arbustos. Ele lambeu-me os braços e as pernas.
Eu estava todo arranhado.
Fui acordado por dois camiões.
Era de manhã.
No fosso onde me encontrava, vi tudo: os polícias e os soldados alemães com as suas armas.
Não me mexi nem respirei. Era óbvio que me vinham buscar. Alguém de casa da Mariette deveria ter-me denunciado, ou então, tinham sido os François, por causa do envelope que estava vazio.
Os ramos do pilriteiro estavam a arranhar-me.
Mas os polícias apontaram para a casa grande e entraram pelo terraço com os soldados. De espingarda em punho, fizeram sair todas as crianças em pijama, mesmo as mais pequeninas, que choravam. Atiraram-nas para os camiões, amontoaram-nas aos gritos de Schnell! Schnell!
Ouvi gritar:
― Liane, Liane, volta!
Foi então que vi a pequena, esbaforida por ter atravessado o prado. Quando me viu, teve medo. De pé, por detrás do arame farpado, permanecia imóvel.
― Salta! ― disse-lhe. ― Chamo-me Élie.
Nesse momento chegou o Tommy, todo contente, a uivar. Pensava que estávamos a jogar às escondidas. Não queria calar-se.
― Anda, salta, Liane!
― Não consigo. Foge, Élie!
Não tive tempo de a ajudar. O barulho das botas aproximou-se.
― Não, o miúdo não ― disse o polícia. ― É o Émile, o sobrinho dos François. É da aldeia.
Então, o soldado pegou na pequena pelo braço. A Liane gritava, não queria, defendia-se com todas as suas pequenas forças.
― Tu, volta para a quinta. Mexe-te ― mandou o polícia.
Alguns minutos mais tarde, os dois camiões cheios de crianças passaram por mim na descida. Deixaram uma nuvem de pó. Ouviam-se choros e cânticos através das coberturas fechadas dos camiões.
Sei que a Liane desapareceu para sempre no grande ventre da guerra. Partiram todos. Sim, sei-o. Compreendo. Estou quase a fazer nove anos.
Continuo à espera.
Será que a mamã virá coser-me uma estrela nova para o meu aniversário?



Élisabeth Brami; Bernard Jeunet
Sauve-toi Élie !
Paris, Seuil Jeunesse, 2003

Para a Liane Krochmal, comboio 71.
Para a Liliane,
Para o Pierre,
Para o Philippe,
que nunca cresceram verdadeiramente.

Para todas as crianças escondidas
e aquelas que não tiveram a sorte
de o ser.

domingo, janeiro 04, 2009

Gebalis

Empresa municipal gere bairros sociais da capital
Gebalis pede indemnização de 5,9 milhões a ex-gestores
02.01.2009 - 11h54
Por PÚBLICO
A actual gestão da empresa municipal Gebalis, que gere os bairros municipais de Lisboa, pede uma indemnização de 5,9 milhões de euros aos ex-gestores Francisco Ribeiro, Mário Peças e Clara Costa, por danos patrimoniais. Os ex-gestores, já acusados de peculato e administração danosa noutro processo, são agora acusados de “usar dinheiro público a seu bel-prazer”.

Segundo a edição de hoje do “Correio da Manhã”, a actual gestão da empresa municipal culpa os anteriores responsáveis de gestão danosa e de terem sido os culpados pelo mau nome a que a empresa está actualmente votada.

Segundo a acção judicial, os envolvidos saberiam do estado deficitário da empresa, mas não se inibiram de gastar dinheiro da instituição consigo próprios ou com pessoas do seu convívio pessoal.

Segundo o jornal, a administração da Gebalis terá gasto, entre Março de 2006 e Outubro de 2007, mais de 64 mil euros com cartões de crédito. Mário peças terá gasto 40 mil euros só em refeições, sendo que do rol de restaurantes por onde o ex-responsável passou estão alguns dos mais luxuosos de Lisboa, Londres e do Brasil.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Convites enviados

Enviei uma série de convites para participarem como colaboradores neste blog. Algumas das pessoas não terão experiencia anterior destas andanças. É fácil, podem crer, mesmo para info excluidos - como eu!. Basta ter alguma abertura para perguntar e eu posso ajudar a dar aqueles passos iniciais mais repelentes (com por exemplo inscrever-se no blogger). Feito isso isto é de uma simplicidade absoluta e muito eficaz na columunicação entre pessoas. Quem se dá ao trabalho de tentar?

As novas cidades


"As cidades mundiais são, simultaneamente, lugares de grande progresso e profunda privação. As áreas rurais sempre foram a mais conhecida face da pobreza. Mas, a pobreza urbana pode ser, simplesmente, tão mais intensa, desumana e ameaçadora para a vida"

Kofi Annan, Secretário-Geral das Nações Unidas entre 1997 e 2007

Fotografia: Moradores de rua de Daca, Bangladesh. Foto: Manoocher Deghati

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Pela primeira vez na história, vivemos em um mundo predominantemente urbano, com mais de 50% da população do planeta vivendo em cidades. Embora sejam grandes centros de produção de riqueza e cultura, as megalópoles crescem, cada vez mais, no chamado terceiro-mundo. Entre a população urbana da África, 72% vivem em favelas. Na Ásia, a proporção de pobres é menor, mas ultrapasa o continente africano em números absolutos.
Como mostra Megacidades, a região metropolitana de Mumbai, maior cidade da Índia, que tem favelas tão imensas quanto Dharavi, com 1 milhão de habitantes, ultrapassou a de São Paulo em população e já ocupa a quarta posição no ranking das maiores cidades do mundo, atrás de Tóquio, Nova York e Cidade do México. Em 2025,apenas Tóquio manterá a posição de maior metrópole do mundo. Será seguida por Mumbai, Nova Déli (Índia), onde um em cada quatro habitantes vive em favelas, e Daca (Bangladesh), com 3,4 milhões de pessoas vivendo sem infra-estrutura em 4.966 precários e irregulares assentamentos.
Outro exemplo, trazido pela revista, é Lagos, na Nigéria, onde 70% da população vive abaixo da linha da pobreza, saltará da 22ª posição para a 12ª no ranking das maiores cidades.

UM BILHÃO DE PESSOAS VIVEM EM FAVELAS

Hoje, segundo a ONU, 1 bilhão de pessoas residem em favelas em todo o mundo – 1 em cada 3 moradores de cidades –, 90% delas nos países em desenvolvimento. A urbanização nesses países virou sinônimo de favelização. E a tendência é de alta: a cada ano, essas áreas recebem 27 milhões de habitantes. Isso significa que, quando for cumprida a meta do Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas, de melhorar a qualidade de vida de 100 milhões de favelados até 2015, o mundo terá mais 243 milhões de pessoas morando em aglomerações precárias.
Os dados são de um estudo feito pelo escritório para coordenação de assuntos humanitários (OCHA) e a agência para habitação (UN-Habitat), ambos das Nações Unidas, no fim de 2007, em que antecipavam o fenômeno da pobreza urbana. Foi publicado pela agência IRIN e está disponível para downloud.

(texto de Adriana Carranca)

Um pouco de história

O Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados em julho de 1944, na Conferência de Bretton Woods, com o duplo objectivo de financiar a reconstrução da Europa depois da devastação da Segunda Guerra Mundial e de evitar a ocorrência no futuro de depressões econômicas do tipo da que assolou o mundo capitalista nos anos trinta. Nessa conferência, foi ainda decidida a criação de uma terceira instituição multilateral, a Organização Mundial de Comércio, com o objectivo de regular o comércio internacional, mas esta só veio a ser criada cinquenta anos depois, em 1995.
O FMI tomou a seu cargo a supervisão das políticas macroeconômicas (déficit orçamentário, política monetária, inflação, déficit comercial, dívida externa etc.), a ser acionado em momentos de crise, enquanto o Bird se encarregou das políticas estruturais (políticas públicas, mercado de trabalho, política comercial, alívio da pobreza, etc.). A ajuda ao desenvolvimento com que o BM veio a ser identificado nas décadas seguintes estava pouco presente no mandato inicial, uma vez que os países que mais tarde vieram a ser considerados “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento” eram então colônias, e o seu desenvolvimento era da responsabilidade das potências coloniais européias.
Tanto o Bird como o FMI foram criados sob a égide do pensamento de Keynes, na crença de que os mercados funcionam freqüentemente mal e que as suas falhas devem ser compensadas por uma forte intervenção do Estado na economia (política fiscal, investimento público etc.).
A partir de 1980, com a era de Reagan e Thatcher, deu-se uma mudança radical (que envolveu purgas no Bird) e as duas instituições passaram a ser as grandes missionárias da ideologia da supremacia do mercado e o Estado, antes visto como solução para os problemas econômicos, passou a ser visto como problema, apenas solúvel com a redução do peso do Estado na economia e na sociedade.
Ao mesmo tempo que o Bird e o FMI foram postos a serviço do modelo norte-americano de capitalismo, o Banco Mundial passou a ser visto como uma instituição dependente do Fundo e este, por sua vez, vinculou-se mais e mais às orientações do Departamento do Tesouro dos EUA. Uma receita universal foi então imposta aos países em desenvolvimento: privatização (das empresas públicas, terra, educação, saúde e segurança social), liberalização dos mercados, desregulamentação da economia, precarização do emprego, descaso de preocupações ambientais.
O resultado desastroso desta orientação está hoje à vista: o aumento dramático das desigualdades sociais; muitos países em África, na América Latina e na Ásia, à beira do caos social e político; 1,2 bilhão de pessoas a vivendo com um dólar por dia e 2,8 bilhões vivendo com dois dólares – ou seja, 45% da população mundial nessa situação.
A partir de meados da década de noventa começou a ser notória a tensão entre o Bird e o FMI, com o primeiro desejando preocupar-se com questões “heterodoxas”, como o meio ambiente, a discriminação sexual e a participação democrática, e aproveitar-se dos golpes na arrogância do FMI produzidos pelos vários fracassos das políticas de ajuste estrutural, culminado no colapso da Argentina em 2001.
Paralelamente, os movimentos sociais reunidos no Fórum Social Mundial têm exigido reformas profundas nas duas instituições ou mesmo a sua abolição. Em particular, denunciam a hipocrisia do Bird e do FMI ao imporem a democracia aos países devedores quando elas próprias não são democráticas (47% do poder de voto no Bird pertence à Europa e EUA). Estas críticas têm vindo a encontrar algum eco dentro do próprio Bird e aqui reside uma das razões da indicação de Wolfowitz.
Para os neoconservadores, o Bird é, tal como a ONU, uma organização suspeita porque é vulnerável ao multilateralismo. Só é tolerável se se puder garantir o seu alinhamento incondicional com os interesses estratégicos dos EUA. Esse alinhamento exige uma maior vinculação da estratégia econômica à estratégia militar. Só assim o “terceiro mundo” deixará de sentir-se dividido entre a supremacia militar dos EUA e a supremacia econômica crescentemente atribuída à União Européia e ao euro.
Para isso é fundamental que a ajuda ao desenvolvimento recompense os países “solidários” na luta contra o terrorismo e puna os recalcitrantes. Por outro lado, é necessário preparar a entrada do Bird no Iraque e convertê-la numa política de compensação para a retirada das tropas cada vez mais encurraladas num beco sem saída. É esta a missão de Wolfowitz: a economia é a continuação da guerra por outros meios.
Os movimentos e as ONGs do Fórum Social Mundial que ainda tinham dúvidas sobre o carácter imperialista e destrutivo do Bird e do FMI deixaram de as ter, o que deve traduzir-se em mais forte mobilização para protestar contra estas instituições e para preparar alternativas realistas. A frase à entrada da sede do Bird em Washington, DC, “o nosso sonho é um mundo sem pobreza”, mostra agora a sua verdade cruel: o fim da pobreza será um sonho enquanto existirem instituições como o Bird e o FMI.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)